Crônica – A Jaula é do lado de fora.
Era uma vez um menino que queria domar leões. Esta é a única verdade que importa, no fim de tudo. Enquanto a cidade de João Pessoa se espantava com a notícia do “vaqueirinho”, do “invasor”, do “rapaz que pulou a cerca do zoo para entrar no cercado da leoa”, nós, na nossa sofisticada cegueira urbana, víamos apenas mais um ato de insanidade. Um espetáculo de horrores para ser consumido entre um café e um scroll na tela do celular.
Mas a história de Gerson, o menino de 19 anos, não começou naquele cercado. Ela começou muito antes, num lugar mais perigoso e sombrio que qualquer jaula: o abandono.
Enquanto nós discutimos a altura da cerca, o menino Gerson já vivia há anos saltando abismos muito mais profundos. Filho de uma mãe com esquizofrenia, neto de avós também “comprometidos na saúde mental”, como dizem os relatórios sociais com uma frieza que gela a alma. Ele não foi apenas pobre. Ele foi pobre de tudo. De pão, de afago, de presente, de futuro. Sua infância foi uma sucessão de “violações de direitos”, um eufemismo burocrático para dizer que lhe roubaram a infância, a segurança, a sanidade.
E no meio desse deserto emocional, brotou um sonho impossível, belo e trágico: ir para a África domar leões. O sonho de um menino que, talvez, quisesse domar a própria fera que rugia dentro de si, a fera da herança genética, a fera da negligência, a fera do desamparo. O leão de verdade, na jaula, era apenas um símbolo exterior de um monstro interior que ele já conhecia intimamente.
Nós, a sociedade, somos especialistas em ver as grades. Vemos a grade que ele pulou. Não vimos as grades invisíveis que sempre o prenderam. A grade da pobreza extrema, que é uma jaula de aço. A grade da doença mental não tratada, que é uma jaula de espelhos distorcidos. A grade do abandono afetivo, que é a mais solitária de todas.
Gerson não era um aventureiro. Era um náufrago. E seu ato desesperado não foi uma invasão ao espaço da leoa; foi um grito abafado, um pedido de socorro escrito com o próprio corpo, num palco de concreto e grades, para uma plateia que só sabia apontar o dedo e filmar com o celular.
É mais fácil trancar o “louco” do que encarar a loucura de um sistema que deixa seus filhos mais frágeis definharem à própria sorte. É mais cômodo acreditar que ele é um “caso”, uma exceção, um problema de segurança do zoo, do que admitir que Gerson é o produto lógico, quase matemático, do nosso fracasso coletivo.
Ele não queria matar a leoa. Ele queria, no delírio de sua mente febricitante e desprotegida, realizar uma proeza. Queria ser, por um instante, o herói de sua própria história trágica. Queria domar o indomável, talvez na esperança ingênua de que, domando a fera de fora, pudesse finalmente silenciar as de dentro.
A verdadeira ferocidade não estava na leoa, assustada em seu recinto. A verdadeira ferocidade é a que permitiu que um menino doente, um menino que “sofreu todo tipo de violação de direito”, chegasse aos 19 anos sem um amparo, sem uma rede, sem uma chance, a não ser a chance derradeira e teatral de pular uma cerca para ser visto.
No fim, Gerson conseguiu. Ele domou a atenção de uma cidade inteira. Por alguns dias, ele não foi invisível. Foi notícia. Mas que tipo de tribo somos nós, que só enxergamos nossos filhos quando eles se jogam na jaula dos leões?
A história de Gerson é um espelho quebrado refletindo nossa própria imagem distorcida. Ela não fala sobre a ousadia de um jovem. Ela grita sobre o silêncio de uma sociedade que ergue cercas para se proteger dos sintomas, mas é conivente com as causas. A leoa está a salvo. Quem precisa ser salvo, urgentemente, é a nossa humanidade.
Alessandra Del’Agnese



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